domingo, 24 de janeiro de 2010

A simplicidade de um grande jornalista

Coloco na integra o artigo escrito pelo jornalista Rodrigo Viana, da Record:

A rádio no interior do RS: comunicação na veia!
publicada sexta, 08/01/2010 às 02:01 e atualizado segunda, 11/01/2010 às 21:34
Era num estúdio assim que eu sonhava trabalhar
Algo no Rio Grande do Sul lembra-me o Uruguai. O que é apenas óbvio, dada a proximidade geográfica entre os dois.

Mas quem já esteve em Montevidéu e Porto Alegre vai certamente entender o que estou dizendo...

Falo sobre isso porque desde ontem estou no interior do Rio Grande do Sul, a trabalho pela TV Record, por conta das chuvas que fizeram desabar uma ponte sobre o rio Jacuí, no município de Agudo.

Hoje, passei algumas horas em Agudo, e o Uruguai voltou-me de novo à cabeça. Há pouco mais de um ano, tive o prazer de visitar Colônia do Sacramento, à beira do rio da Prata. Evidentemente, a uruguaia Colônia tem mais história (e mais atrações turísticas e arquitetônicas) do que a pequena Agudo (que, agora, ainda ficou sem sua ponte). Mas Agudo, na hora do almoço, lembrou-me Colônia. A cidade para. Parece dormir uma siesta preguiçosa. O comércio (em parte) fecha. As ruas ficam ainda mais vazias. A gente quase escuta o silêncio, só interrompido por um ou outro carro que passa devagar, sobre o calçamento de pedra na rua principal.

Achei muito saboroso encontrar no Brasil uma cidade com disposição pra parar pro almoço! Mas o mais saboroso ainda estava por vir.

Meu objetivo em Agudo era entrevistar Márcio Nunes, jornalista da "Rádio Agudo" (pequena estação local), que narrou ao vivo o momento em que a ponte desabou na última terça-feira. Parte do relato que ele fez pode ser ouvido aqui - http://videos.r7.com/reporter-de-radio-narra-queda-de-ponte-no-rs/idmedia/09a83886ae8541d310976d7fa1f767a7.html.

Pois bem. Fui procurar o Márcio no estúdio da "Rádio Agudo". Fica no térreo de um pequeno prédio, no centro da cidade. Os andares de cima são ocupados por apartamentos residenciais. Quando cheguei ao estúdio era meio-dia e quinze. Dei com a cara na porta.

Na entrada havia um aviso de que entre 12h e 13h30 não havia "atendimento ao público". Claro, a redação da rádio também para pro almoço no interior do Rio Grande do Sul. Mas encostei o ouvido à porta e percebi que havia gente lá dentro. Toquei a campainha, e lá veio um simpático rapaz a atender. André, operador de aúdio, botava a rádio no ar naquela hora. Sim! O povo vai almoçar, mas o André fica por lá. E ele achou tempo pra vir abrir a porta correndo. No estúdio, havia mais um herói da informação: Luiz Henrique, locutor.

O Márcio (que eu queria entrevistar) não estava. Mas fiquei a observar André e Luiz Henrique a trabalhar.

O Luiz Henrique lia os "avisos e notas". Na hora do almoço, a rádio presta esse serviço à população. Há notas de falecimento, há notícia sobre a dona fulana, que "segue hospitalizada, mas deve retornar pra casa nos próximos dias".

Lá pelas tantas, o locutor Luiz Henrique surpreendeu-me: "agora, um aviso de desaparecimento; seu fulano, morador da comunidade X, avisa que perdeu uma novilha no campo".

Achei o máximo!
Pensei se essa não é a verdadeira "comunicação social".

A rádio fala pro povo simples do interior, que na hora do almoço quer saber quem morreu, quem foi hospitalizado, quem perdeu suas novilhas pelo campo.

O Luiz Henrique e o operador de áudio André cumprem sua tarefa com humildade e dedicação. Talvez sonhem em trabalhar na capital gaúcha, no Rio ou em São Paulo. É natural que tenham o sonho de olhar pra longe. Ou, talvez, não. Por que a rádio de Agudo é menos importante do que a Guaíba de Porto Alegre ou a Tupi no Rio?

É bonito ver gente a se comunicar com seu povo, sem afetação, sem pretensão, cumprindo o papel de intermediário da notícia.

Verdade que nesses dias a "Rádio Agudo" anda agitada, porque a toda hora o locutor precisava interromper os "avisos e notas" para atualizar as informações sobre os desaparecidos no trágico acidente da ponte que ruiu no rio Jacuí.

Juro que fiquei com uma vontade danada de trabalhar numa rádio dessas. Imagino que o salário não seja uma beleza, sei que deve ser perturbador ficar dias e dias lendo anúncios fúnebres e notas sobre a eleição da nova diretoria da associação comunitária. Mas invejei o trabalho do Luiz Henrique e do André.

Lembrei da minha adolescência, quando decidi ser jornalista. E foi o rádio que me fisgou primeiro. Minha mãe ouvia muito rádio em casa. Eu passei a ouvir, especialmente programas esportivos. Até hoje, adoro ouvir papo furado de locutor de esportes. Gosto do Milton Neves. Já disse isso a ele, por e-mail. Era fã da equipe que o Milton comandava na antiga "Jovem Pan" de São Paulo.

Muito jornalista metido a intelectual não gosta do Milton. Ele é tido como "cafona". Não estou nem aí. Gosto do jeitão simples dele. É a cara do rádio.

Quando tinha uns 11 ou 12 anos, meu irmão e eu chegamos a criar uma rádio fictícia, só pra transmitir nossos jogos de futebol de botão. A rádio tinha locutor, repórter, chefe do plantão, comentarista. E tinha até vinheta e comercial.

Com o tempo, as transmissões fictícias ficaram tão importantes quanto os clássicos que disputávamos no futebol de mesa. Clássicos que muitas veses terminavam com viradas (literais) de mesa - quando meu irmão ou eu não aceitávamos alguma decisão da "arbitragem". Aí, nossa rádio saía do ar e o pau comia. He, he.

Desconfio que virei jornalista porque queria narrar futebol no rádio. Queria falar no microfone do rádio.

Até hoje, não realizei o sonho.
Já trabalhei em jornal, TV, fiz freela pra revista. Mas rádio, nunca!
Talvez por isso também eu tenha invejado um pouquinho a turma da " Rádio Agudo". Era assim, com a simplicidade deles, que eu sonhava fazer jornalismo.

Um dia ainda arranjo emprego numa rádio, nem que seja pra dar os resultados do futebol, no meio da madrugada. Ou pra anunciar desaparecimento de novilha nos campos gaúchos.

Uma tragédia me trouxe ao sul. Mas acabo aqui falando sobre rádio e lembranças da infância. Ando meio sentimental esses dias. Deve ser o começo do ano...

Que experiência!


Cerca de meia hora depois da tragédia, nos da equipe da Rádio Agudo, não dávamos mais conta dos telefonemas, eram ligações de pessoas e veículos de comunicação de todo o estado. Começamos a partir daí, dar boletins e entrevistas ao vivo. A primeira rádio com quem eu falei foi a Band AM e em seguida a FM. Não paramos mais, foi assim até quinta-feira e alguns boletins até no sábado, 16 de janeiro, quando o corpo da Denise, última vitima fatal, foi encontrado.


Confesso e digo que não sei da onde tirei forças para trabalhar durante todos estes dias. Na quinta a tarde as forças se foram: não tive mais condições emocionais para trabalhar. É horrível, você ter uma pessoa que considera da família desaparecida, e ter que falar sobre ela, sobre a vida dela nos mais diferentes veículos de comunicação do estado.

A nossa Rádio Agudo passou a partir daquele dia ser reconhecida, e respeitada, por vários veículos de comunicação. Após algumas informações, FALSAS, serem vazadas na imprensa, por GRANDES veículos de comunicação do estado, tais como: sete mortos e o vice-prefeito ter sido encontrado com vida; toda vez que surgia uma nova informação a imprensa ligava para nos, eu, Rique ou Márcio, para ver se tais informações eram precisas ou não.


Era até difícil de trabalhar, pois o telefone não parava na nossa emissora. Cheguei a tirar o meu telefone do gancho, para conseguir produzir as noticias para serem divulgadas na rádio. Eu e o Rique se desdobramos em vários. Quando um dia imaginamos que falaríamos com grandes jornalistas do estado e pais, daríamos entrevistas a eles? E nosso Agudo ser manchete internacional?


Ficou mais uma vez comprovado que a gente nunca sabe o dia de amanhã.

Perdemos um grande amigo


A cheia do Jacuí já estava me deixando angustiada, desde o dia 4 de janeiro. Pensava eu: “o que será da nossa agricultura em 2010”. As perdas são incalculáveis.


Assim que o repórter Marcio Nunes relatou o que havia acontecido, afirmando com absoluta certeza que o Beto Boeck estava entre as pessoas que caíram, as lágrimas tomaram conta do meu rosto. Foi difícil de trabalhar. Forças? Até hoje não sei da onde encontrei. Nessas alturas a agricultura levaria anos para se recuperar, mas as vidas que se foram nunca mais.


Ao mesmo tempo que rezava para o Beto estar bem, eu pensava na tia Leni, no Rafa e na Gabi, no Samuel e na Cris, no Miguel e no meu afilhado Vinicius. Lembrava do domingo, dia 3 de janeiro, que passamos juntos na casa da beira do irônico Rio Jacuí.


Não conseguia imaginar que o pior poderia acontecer....e aconteceu. O corpo do tio, que de sangue não era meu tio, Beto foi encontrado no dia 7 de janeiro, quinta-feira. As minhas forças se acabaram na quinta de manhã, no esporte minha presença foi quase nula e a tarde, após a confirmação do corpo, se acabou de vez.


A gente perdeu um grande amigo, uma grande pessoa, prestativa e sempre disposta a ajudar. Ficaram as boas lembranças e que por ironia, as melhores e divertidas lembranças foram na casa do Rio Jacuí: os jogos de bocha e carta, as divertidas conversas, pescarias, jantas e almoços de domingo e o chimarrão do Beto, tudo no Jacuí. Jamais te esqueceremos, descanse em paz.

Tragédia em Agudo ( a ponte caiu)


O dia 5 de janeiro de 2010 amanheceu nublado, com cara feia. Havia chovido muito na segunda, dia 4. Previa-se a maior enchente desde 1941. E foi isso que aconteceu: na madrugada do dia 4 para o dia 5 a maioria dos moradores próximos ao Jacuí não dormiram. Com o rio subindo rapidamente tinha mais é que cuidar dos animais, implementos agrícolas e a própria vida.


Desde às 7 horas da manhã o repórter da Rádio Agudo, Márcio Nunes, com a unidade móvel, percorria algumas localidades do interior, relatando o que estava acontecendo. A ligação de Agudo a região da Quarta Colônia, pela Várzea do Agudo, na ERS-348, já não existia: as cabeceiras da ponte seca haviam sido levadas pela força das águas.


O dia já havia começado com esta notícia, teríamos muito trabalho naquele dia. Afinal, nosso trabalho é informar. Mas não sabíamos que o pior estava por vir.


Era exatamente 9h03min quando diretamente do Cerro Chato, próximo a ponte sobre o Jacuí na RSC-287, mais uma vez o Márcio Nunes entrava ao vivo na programação do Panorama. Mas desta vez era diferente: Márcio entrava desesperado, chorando e relatando: “a ponte caiu, tinha amigos nossos sobre ela, tem gente descendo pela água, tem gente sobre as árvores”.


A partir daquele momento, muita angustia, dor, sofrimento e tristeza. A desolação tomava conta da cidade de Agudo, não havia outro assunto.


Foi um horror. Pessoas amigas e conhecidas estavam sobre a ponte: 10 pessoas foram resgatadas com vida e cinco morreram, entre elas nosso querido vice-prefeito, e amigo, Hilberto Boeck.


Lavouras e estradas destruídas, vidas que se foram. O município nunca mais será o mesmo. A tragédia, as vidas e a maior enchente desde 1941, que invadiu casas, escolas e levou tudo o que veio pela frente, isto tudo comoveu toda a comunidade, desde amigos e familiares até aqueles que só conheciam essas pessoas de vista. O assunto principal das rodas de conversa continua sendo: a queda da ponte do Jacuí.


Qual agudense esquecerá os dias de peregrinação pela RSC-287 até a ponte, atrás de sobreviventes, de noticias daqueles que sumiram no meio das águas? Das incansáveis buscas do grupo de buscas e salvamentos de Porto Alegre, defesa civil e voluntários? Como esquecer o dia 8 de janeiro, quando a comunidade enterrou o nosso vice, Beto Boeck, querido e prestativo, que foi até a ponte fotografar a enchente, para anexar no relatório, e decretar situação de calamidade pública? E seu Ildo Dunke, sobrevivente, quebrou a perna, perdeu sua esposa Lori Dunke e a filha Denise? Na cidade de Restinga Seca o triste enterro de Renato Camargo? E a espera dolorosa do seu Arlindo dos Santos pelo filho Nelo dos Santos (namorado de Denise)?.


A dor e a angustia foi um pouco amenizada no dia 16 de janeiro, quando o corpo de Denise foi encontrado em uma lavoura de arroz. Terminava naquele dia a busca pelos desaparecidos.


Passar pelo Jacuí, ver o Jacuí, se divertir no Jacuí, certamente, nunca mais será como antes.